Pais e filhos

_E aqueles ali são mendigos.
_O que são mendigos?
_Mendigo é um morador da rua, talvez ele tenha família mas não consiga conviver com eles, um dia deve ter tido um emprego mas algo o distanciou dele e agora, sem dinheiro e sem outra opção que ele prefira e esteja ao seu alcance, ele passa os dias na rua.
_Eu posso morar na rua também?
_Acho melhor não. Na rua faz muito frio à noite e será sempre hostilizado por ser uma imagem de fracasso social. É mais fácil sofrer violências quando está sozinho e sem nenhuma proteção. Melhor você continuar em casa.
_O que é hostilizar?
_Dar castigos.
_Tem criança morando na rua?
_Sim, sozinhas, com outras crianças, com adultos, com suas famílias. Mas elas devem sofrer bastante.
_Por que elas sofrem?
_Seus pais não tiveram condições de dar a elas um bom lar, carinho, proteção e prepará-las para sobreviver à sociedade...
_O que é sobreviver à sociedade?
_São regras que todos devem aprender para não receberem castigos.
_Quem é a sociedade?
_Todas as pessoas que você já viu e muitas outras, todas da cidade.
_... - os olhos miravam longe, tentavam capturar todas as cores que existiam.
Carrinho de supermercado representa a humanidade.
  _Mas tem crianças que tiveram um lar mas não ficaram sem castigos. Entre aqui.
_O que elas fizeram?
_Não conseguiram aprender. Nem todas crianças tem pais para lhes ensinar, eles podem ter aprendido bem ou mal, mas isso não importa, elas são castigadas se não conseguem aprender. O mundo não está preparado para todas crianças que tem. Sente neste banco cá comigo.
_O que vai acontecer com elas?
_Irão tentar viver e se os erros que cometerem não custarem castigos muito muito maus elas poderão ficar em algum canto da sociedade. Muitas aprendem olhando as outras pessoas, os erros das outras crianças, essas recebem menos castigos.
_... - batendo os calçados um ao outro, cabisbaixo, talvez refletindo.
_É a minha vez, vem comigo.
_Tá.
_Obrigado. - é a única palavra dirigida a alguém que estava do outro lado de uma janela, esta pessoa havia entregue uma sacola branca e pequena.
_Pai, tem crianças chorando ali.
_Elas devem estar doentes, ou com dores, aqui é o lugar para onde vem todo mundo que está doente ou com dor.
_Mas eu nunca vim aqui antes.
_Só doenças ou machucados que demoram para passar, os seus sempre passaram rápido.
_Ninguém vai ajudar elas?
_A cidade tem mais crianças doentes e machucadas do que hospitais para ajudar, elas terão de esperar.
_O que é um hospital?
_Esta casa é um hospital, é um lugar onde trabalham pessoas que estudaram para sarar pessoas machucadas e doentes.
_Por que não fazem mais hospitais?
_Não adianta, faltaria pessoas para trabalhar, só podem trabalhar com isso as pessoas que estudaram, e não temos mais escolas. É preciso dinheiro para tudo isto, para fazer hospital, para fazer escola, para ter estes trabalhadores, para ter professores. E as pessoas que estão aqui tem pouco ou nenhum dinheiro, não podem ter mais hospitais.
_... - agora esfrega as palmas das mãos contra as coxas, acredito que ancioso.
_Mas os pais delas não tem dinheiro?
_Eu não sei, nem todo mundo tem algum dinheiro, pode ser pouco o que eles tem. Mesmo as pessoas que se preparam para terem seus filhos podem ter problemas imprevistos.
_O que são problemas imprevistos?
_Lembra quando sua mãe estava lavando o quintal, estava tarde e frio e disse para você não se molhar? Lembra que você pegou a mangueira e se molhou?
_Sim.
_Depois você ficou reclamando de frio, mas isso não importava antes de se molhar, certo?
_É, eu queria brincar.
_Mas sempre que você sai do banho precisa da toalha para não ficar com frio, é sempre assim quando nos molhamos. E problemas imprevistos são isso, é quando queremos muito algo sem enxergar tudo o que pode acontecer, você não lembrou que ficaria com frio e ainda molhou a cozinha.
_A mãe ficou brava.
_Ela gosto muito de ti, não quer que fique doente por passar frio.
_A mãe tem dinheiro?
_Não, ela não tem. Ainda não pagam as pessoas para cuidar dos filhos. Nós não estávamos preparados. Ter uma um filho foi uma escolha como brincar com a mangueira no quintal em uma noite gelada. Vamos embora agora.
Brinquedinhos de alguém.
 _Por que quiseram ter filho então?
_Eu não me preocupei, fiz como tu, só fiquei no quintal sem pensar que sentiria frio. Tua mãe tinha muitos problemas, mais do que eu. A sociedade disse que ela deveria ser mãe, que isto a deixaria feliz, que ela precisava de um parto e coisas assim. A natureza havia a preparado para isto. A família e os amigos cobravam e ela tinha medo de ficar sozinha, não queria mais viver com os pais dela, queria a própria família, uma casa em que ela seria a mãe. Eu não dava a ela a confiança de que ficaria a vida toda ao lado dela, haveria mais chances de que eu quisesse ficar com ela caso tivesse uma ligação forte, tivéssemos uma casa e família. Deu certo, e agora com seu irmão ela ganhou uma profissão, dona de casa.
_Você nunca vai embora?
_Não, por enquanto tenho que cuidar de vocês dois, e quando não precisarem mais de mim vou cuidar da tua mãe. Nos intervalos eu alimento a indústria do álcool, ela não cobra muito para tentar me iludir de que posso viver sem buscar sonhos próprios. Tem homens que sonham em ser pai de família, e quando encontram outra pessoa com o mesmo sonho são felizes em ter filhos, só que ficaram infelizes com a sociedade, ela não paga bem pais de família e castiga quem não gosta de profissões que pagam bem. Por isso sua mãe quer que estude, ela não quer que seja castigado pela sociedade por ter uma profissão que não paga bem. É no próximo ponto, venha, vamos descer.
Carpe diem.
 _Pai, você e a mãe são felizes?
_Lá em casa eu falo sobre felicidade.
Se ele fosse mais humano seu brinquedo teria vida.
_A mãe não está aqui em casa, já procurei.
_Ela está com teu irmão na casa dos pais dela. Venha aqui comigo na cozinha.
_O que vamos fazer?
_Coloque a sua mão aqui dentro e me diga como está a temperatura.
_O que é temperatura?
_Está quente ou está frio?
_Está frio.
_Segure isto apenas com uma de tuas mãos.
_Ai, está gelado!
_Segure, é apenas uma pedra de gelo.
_Mas eu vou morrer!
_Não vai não, ainda estou pagando a tua cama. Me dê agora o gelo. Com a mesma mão, agora, coloque ela aqui novamente. A água ainda está fria?
_Não, parece mais quentinha agora.
_Mas a água é a mesma, a sua mão que passou por uma situação diferente. Assim é a felicidade filho, não dá para dizer para outra pessoa como é, cada pessoa tem seus próprios sentimentos. Não deve cometer o erro de acreditar que o que faz outra pessoa feliz também te fará. Agora eu vou limpar está água toda, vá para o quarto e pegue aquela caixa que viu comigo e com tua mãe ontem.
_Tô indo.
Família errada, corre atrás do gato, cão, corra!
_Sente aqui. Esta caixa é parte de um jogo e dentro estão as peças, abra.
_Tem um montão pai. Como brinca?
_Abra a caixa e ela vira um tabuleiro, você tem que colocar uma peça em cada quadrado.
_Em qualquer quadrado?
_Sim, coloque como você quiser, mas uma em cada quadrado.
_Posso começar?
_Pode, quem começa antes pode levar uma vantagem.
_E o que eu faço?
_A escolha é tua.
_Mas eu não sei o que fazer.
_Você viu eu e tua mãe jogando, não faz ideia do que tem que fazer?
_Eu os vi mexendo as peças.
_Isso mesmo.
_Certo, vou mexer esta aqui.
_Não pode.
_Não?
_Não.
_E está?
_Se mexer esta já começa perdendo.
_Mas... como ganha?
_Realmente, como ganha, eu ainda não sei, mas posso te ajudar a não cometer os erros que já cometi. Assim espero que você jogue melhor do que eu.
_Mas eu queria jogar. - disse diminuindo a voz ao longo da curta frase.
_Você vai jogar, filho. Todo mundo tem que jogar. Como eu jogo a mais tempo que você eu estarei aqui te dando uma ajuda, mas pode pedir ajuda para sua mãe também. E enquanto você não sabe nenhuma regra eu gostaria que observasse eu e tua mãe jogando, além de todas as pessoas que você consiga ver. Mais tarde, quando já tiver observado um bom número de pessoas, eu vou te ensinar a questionar. Com o passar do tempo lhe mostro novas regras que já aprendi e também as que eu for aprendendo.

*Quando eu era criança tentaram me ensinar a aceitar o que não entendo. Não consegui aprender e hoje tento entender o que não aceito. A sociedade castiga quem não sabe aprender.

Related Posts with Thumbnails

Nenhum comentário: