Amigos da boa moral

Eu tenho amigos moralistas, sempre confortados e indignados.
Dizem que o problema é a corrupção, mesmo que não saibam exatamente quem corrompe, quem é corrompido ou se este é mesmo dos males o pior. Preferem a lei que qualifica esta prática como hedionda (mesmo que a lei que qualificou sequestro como hediondo não tenha diminuído em nada este crime que só cresceu nas duas últimas décadas), lei abraçada pelos políticos. Antes uma lei que acalme a multidão e que possamos ignorar do que qualquer outra medida mais drástica que possam imaginar, certo?
Falam alto que mulheres que querem o direito absurdo de andarem na rua sem roupa da cintura para cima são feminazis (uma aglutinação de feministas e nazistas, para qualificar seu extremismo de querer o mesmo que homens). Eu procuro imaginar como vive uma mulher, que desde sua infância recebe os olhares e frases de homens que lhes direcionam seus desejos sexuais, imaginar um trajeto de algumas quadras pela cidade e ouvir deselegâncias, saber que querem usar meu corpo para seu próprio prazer sem se importar com minha condição humana, sua dignidade, o incômodo do olhar vislumbrado pelo corpo, mas isso não deve ter acontecido comigo tantas vezes quanto deve acontecer com uma garota que anda algumas quadras na cidade onde moro.
Dizem-me na cara, e eu ouço, que as pessoas que recebem o bolsa-esmola (imagem pejorativa de auxílios concedidos pelo governo) não deveriam votar, que isto seria o voto de cabresto (um termo usado antigamente, na época em que fazendeiros eram chamados de coronéis, e impunham que seus funcionários - vulgo vassalos - votassem em quem eles escolhessem). Oras pois, eu que estudo em universidade pública também terei meu título de eleitor cancelado? E quando deixar de ser estudante e precisar de um hospital público, eu fico de fora somente se for em ano eleitoral ou fico de fora da próxima eleição independente da data? Já temos uma previsão sobre o que fazer com os funcionários públicos, pois são os mais diretamente relacionados ao que eram os funcionários dos fazendeiros-coronéis, principalmente, frisaremos, os que não tenham estabilidade no cargo e podem receber pressões por perca de cargo ou demissão, títulos todos cancelados?
Aiai, que não existe discriminação no Brasil, pois nunca viram, que deveríamos esquecer tudo isto, cotas para negros são uma ofensa e piadas sobre minorias não são, que todos tem direitos e condições iguais. Acho que uma pessoa de pele clara que não compreende o que é discriminação por cor de pele ou traços físicos está assim como os meninos que não entendem a discriminação com meninas. Como entender o que nunca sentiu? Eu tento.
Já fingi ciúmes da namorada, que deve ser tratada como posse, conquista, um bem orgânico e já elogiei com segundas intenções a garota transeunte, pois tenho a necessidade de ser um lobo sedento, de não fugir à regra. Desde criança repetia, mesmo sem compreender, o ódio e medo dos homossexuais, dos pobres criminosos, na adolescência resolvi parar de entender homo-afetivos como bruxas, sinônimos de insulto, mesmo que não tenha conseguido ainda entender como rapazes poderiam gostar de rapazes, se era ilógico para mim, e aceitando mais facilmente meninas gostando de meninas, que era perfeitamente lógico aos meus olhos.
Nunca entendi o repúdio a um pobre que vira criminoso, no meu entendimento ele deveria ser a regra e não a exceção. Ver os velhos serem desrespeitados, os pais continuarem pobres, os aposentados sem condições de se manterem, a agressão policial, a propaganda na TV que enaltecia o consumo, ver a fome, a música, a dor, o esgoto e a desigualdade. Foram coisas que aprendi a tomar como regras, regras que não compreendia de princípio mas que existiam, pode haver meninos que beijam meninos, eca, e pobres que não reagem agressivamente aos seus maus tratos.
Generalizar, julgar-julgar-julgar, não vou promover atos de confiança tão cedo a desconhecidos, vou reparar em como os semelhantes a mim se vestem e repetir, me comportar como o esperado e continuar sem saber o que pensar quando estiver caminhando na calçada sob a leve chuva e avistar um morador de rua, sentado, aos trapos, me acenar sorrindo, ele me viu triste. Minha mãe me ensinou que se tentar não ser diferente vai doer menos.
Quando não estou na companhia dos meus amigos conhecedores da moral eu caminho de forma diferente, muitas vezes cabisbaixo, com vergonha de tudo que devo demonstrar que sei, de tudo que não consigo entender, livre das certezas, com medo do impulso, com as dores das lembranças.


Endereço original onde encontrei esta imagem.
Página (tumblr) que está pedindo aos 'acordados' para que voltem a dormir.
Brasil, por favor, pare, vá pra casa, você está bêbado.
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